Por Gleisi Hoffmann*, Elvino Bohn Gass**, Henrique Fontana***
PUblicado originalmente na Folha de São Paulo de 29.06.21
As propostas de uma reforma política e eleitoral em tramitação na Câmara dos Deputados, sem debate aprofundado com a sociedade, são preocupantes. É a mais abrangente e impactante mudança desde a redemocratização, incluindo um verdadeiro tiro de morte na democracia: a adoção do chamado distritão, um dos piores sistemas eleitorais do planeta.
É uma ameaça à representatividade de minorias políticas e de segmentos sociais, já que são eleitos apenas os deputados mais votados, jogando-se milhões de votos na lata do lixo. Se houvesse distritão em 2018, 70% dos votos seriam desperdiçados. Ou seja, 68 milhões dos quase 100 milhões de eleitores que escolheram um candidato a deputado federal teriam seus votos descartados.
Não há exagero em dizer que esse modelo é uma espécie de “seguro reeleição” que dificulta a renovação de lideranças. Porque se trata de um estímulo ao hiperpersonalismo, ao populismo e ao abuso do poder econômico, com menos candidatos, campanhas milionárias e enfraquecimento dos partidos. Como se sabe, nenhuma das democracias mais maduras se constituiu sem o fortalecimento de partidos.
O distritão prioriza popularidades de indivíduos em detrimento do aprimoramento do debate de ideias, programas e projetos para o país. E ainda acaba com qualquer incentivo ao esforço coletivo e com o voto na legenda. Impede a possibilidade de se eleger parlamentares que representam melhor a diversidade de pensamentos que compõem a sociedade e derruba a qualidade do debate eleitoral.
O atual sistema proporcional, mantido pelas Constituintes de 1946 e 1988, funciona há 70 anos, possibilitando eleger parlamentar que tem os chamados votos de opinião, como intelectuais e líderes religiosos e comunitários.
Aponta-se a existência de puxadores de votos como deformação do sistema. Ora, o distritão cristaliza e não corrige essa anomalia, que pode ser solucionada com a exigência de patamar mínimo de votação.
O distritão induz os partidos à prática de apresentar poucos candidatos. Um estado como São Paulo, representado por 70 deputados de variadas legendas, com certeza não teria mais que 90 candidatos. O crime organizado, o tráfico ou as milícias teriam mais facilidade de eleger representantes nas regiões que controlam.
A mudança cria uma governabilidade anárquica no Congresso Nacional. Cada parlamentar torna-se dono do próprio mandato, praticamente inviabilizando a composição de maiorias.
Figuras populares, como celebridades, youtubers e donos de canais propagadores de fake news, muitos patrocinados por interesses escusos, saem na dianteira num cenário em que se atacam os partidos e os princípios da proporcionalidade, em prejuízos dos candidatos próximos às comunidades e dos representantes das minorias. É o privilégio da fama sobre o trabalho coletivo.
Bandeiras atuais, como a ampliação do espaço das mulheres e dos negros na política, também se tornam de difícil concretização. E acaba-se com a fidelidade partidária, abrindo-se as portas para desrespeitar a decisão do eleitor e aumentar o poder de barganha individual, a troca de favores e a corrupção.
Nenhuma democracia consolidada tem distritão. O sistema vigora apenas no Afeganistão, na Jordânia e em alguns pequenos países insulares. Portanto, adotar um sistema que elege os mais votados, parece, mas só parece, simples e óbvio. No entanto, como afirma o cientista político Jairo Nicolau, o fato de ser um sistema simples não significa que ele seja bom.
Distritão é maléfico ao sistema democrático. É um retrocesso para a democracia brasileira. Trata-se de um golpe contra a representatividade política.
* Gleisi Hoffmann | Deputada federal (PR) e presidenta nacional do PT
** Elvino Bohn Gass | Deputado federal (PT-RS) e líder do partido na Câmara
*** Henrique Fontana | Deputado federal (PT-RS), é vice-líder da minoria na Câmara
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